Texto XXV
Embate entre dois modelos de “democracia” na questão das eleições venezuelanas
No dia 14 de março de 2013 aconteceu o pleito eleitoral na Venezuela entre o candidato chavista, Nicolás Maduro, e seu opositor, Henrique Capriles, culminando na vitória do primeiro por uma diferença mínima de 1,5%, o que representaria 225 mil votos de margem entre um e outro. Logo após o resultado oficial, representantes do candidato derrotado entregaram ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ), um documento assinado pelos oposicionistas, exigindo a impugnação das eleições e sua repetição em razão do que chamaram de, “atos de coerção, violência e fraude pelos governistas ao longo do pleito”.
Na prática, a oposição considerou que a auditoria proposta pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) logo após o resultado oficial divulgado seria um mero engodo governista, ou seja, que os chavistas teriam aparelhado o Estado venezuelano de tal maneira ao longo dos 14 anos de governo Hugo Chávez (1998 – 2012) que as instituições do país seriam democráticas apenas na aparência, que o chavismo representaria na verdade um modelo de regime ditatorial muito mais sutil do que os típicos regimes dessa natureza.
Por sua vez, o candidato vitorioso respondeu que com sua vitória nas urnas, “Chávez continuava invicto” e que os argumentos da oposição representariam a “violência fascista, intolerância e o ódio daqueles que não querem uma Venezuela livre do Imperialismo estrangeiro ou mesmo que têm aversão à inclusão e a igualdade social”.
Assim, os governistas continuaram sua prédica usual de que Capriles não passaria de um ambicioso líder direitista, antichavista e golpista, articulado aos interesses dos EUA e das elites locais venezuelanas, os grandes proprietários de terras, se interpondo contra o chamado Plano da Pátria, a mesma plataforma política anunciada por Chávez na campanha eleitoral vitoriosa de 7 de outubro de 2012, que em teoria prevê o desenvolvimento econômico, o aprofundamento de políticas inclusivas, o fortalecimento da soberania nacional, o aumento do protagonismo popular, a ampliação da integração latino-americana e caribenha, a luta anti-imperialista e o aprofundamento do chamado socialismo bolivariano, tido como “verdadeiramente” democrático por seus adeptos.
Interessante mencionar que um embate ideológico tão polarizado como esse deixa marcas em qualquer sociedade, acirrando os ânimos dos partidários de lado a lado, o que culminou na violência pelas ruas das grandes cidades venezuelanas. Pelo menos oito pessoas morreram no país na segunda-feira do dia 15/04, primeiro dia pós-eleições. Na terça feira, dia 16/04 sete pessoas foram assassinadas, enquanto que 61 ficaram feridas nos embates entre governistas e oposicionistas, culminando em 135 detidos nas manifestações que se seguiram em várias regiões do país ao longo da primeira semana pós-eleitoral.
Para tentar acalmar os ânimos e para demarcar seu apoio ideológico a um dos lados da contenda, diversos líderes da América do Sul esboçaram publicamente na quinta-feira, dia 18/04, no Peru, uma demonstração coletiva de apoio ao pleito, às instituições venezuelanas e ao presidente eleito da Venezuela, enquanto que os Estados Unidos se alinharam automaticamente com a oposição no pedido de recontagem dos votos das eleições.
Antes de embarcar para Lima, Maduro pronunciou um discurso acalorado transmitido pela TV Estatal venezuelana, dizendo que "na Venezuela nós não temos uma oposição, temos uma conspiração permanente apoiada pelos Estados Unidos". O presidente da Bolívia, Evo Morales, chegou a afirmar que a potência hegemônica não teria o direito de questionar a vitória de Maduro, já que o presidente George W. Bush conquistou sua própria reeleição por uma margem semelhante, no ano de 2004 (na verdade uma vitória questionada na Flórida por cerca de 500 votos de diferença). "Isso é claramente uma interferência", disse Morales em La Paz. "Condenamos e repudiamos isso. Não vamos permitir que a Bolívia ou a América Latina sejam tratadas como quintal do governo dos EUA.". Sem dúvida um discurso bastante forte e igualmente acalorado, apoiado pela maior parte dos presidentes sul-americanos que integram a UNASUL (União das Nações Sul Americanas), uma instituição supranacional criada em 2008.
Após tais fatos cabem algumas ponderações sobre este embate ideológico, um embate que coloca em lados opostos duas visões e dois modelos polarizados de democracia, ainda que ambos os lados julguem o outro como eminentemente antidemocrático.
A primeira diz respeito a uma teorização sobre a natureza dos regimes democráticos na contemporaneidade, regimes esses pensados por intelectuais de tendência liberal como marcados por certa apatia e até um distanciamento positivo nas decisões políticas, o que pode ser expresso pelas ideias de dois teóricos da primeira metade do século XX: Seymour Martin Lipset e W.H Morris Jones.
Na opinião desses pensadores, a democracia deveria primar somente pelo funcionamento de suas respectivas instituições, sem preocupações com quaisquer fins a serem alcançados, ou seja, um regime político como um fim em si mesmo. A democracia funcionaria plenamente desde que suas instituições fossem autônomas e desde que o campo obrigatório do voto não existisse. Nesse sentido, os políticos profissionais não passariam de técnicos em gerenciamento e administração pública (um grupo de especialistas), o Estado devendo ser, portanto pouco interventor na vida cotidiana das pessoas, em qualquer instância, seja política ou econômica.
Os eleitores-cidadãos não teriam quaisquer obrigações de participação no sistema eleitoral (já que a ideia de obrigação do voto expressaria, na opinião dos autores, o pensamento de pessoas extremistas e descontentes, isoladas economicamente), o voto constituindo-se em um verdadeiro direito e não um dever cívico. Além disso, o regime não deveria se preocupar com a igualdade social, mas sim com a defesa do próprio regime e das garantias das liberdades individuais, deixando para o mercado econômico e a iniciativa privada as questões de natureza social, dentro de um esquema de desigualdade natural imanente a cada ser vivo, que ascenderia ou não na vida social de um país de acordo com suas próprias potencialidades e formação pessoal.
Já o outro modelo encontra sua base de sustentação em diferentes pensadores e matizes teóricos, desde socialistas utópicos, sociais-democratas de base keynesiana adeptos do Estado de bem estar social (welfare state), tendo talvez o clássico pensador oitocentista, John Stuart Mill como um de seus principais defensores. Segundo esse pensador, o regime democrático deveria primar pelo interesse público e pela busca das igualdades sociais em todas as instâncias, um regime a atuar em nome da cooperação, da pratica política cotidiana e da existência de um bem público, nos moldes apregoados por Aristóteles, que apesar de não ser um defensor da democracia de tipo grego afirmara que os bons governos seriam aqueles em que os que governam o fazem pelo bem comum (uma opinião desenvolvida mais tarde pelo pensador iluminista John Locke).
Assim, tal regime não somente defenderia uma educação cívica e ética para os cidadãos-eleitores, dentro da defesa de que o voto seria um dever cívico, como também auxiliaria na ascensão econômica de indivíduos menos favorecidos no mercado econômico, o Estado democrático devendo, portanto ser mais participativo na vida cotidiana das pessoas e essas, por sua vez mais engajadas nas decisões políticas desse respectivo Estado.
Tratam-se, assim de dois modelos bastante idealizados e que não são necessariamente operacionalizados integralmente no mundo da realpolitik. Mesmo assim acabam servindo de parâmetros daquilo que convencionamos chamar de regime democrático. Dito isso é preciso estabelecer uma relação entre tais teorias e a prática política, tendo o embate ideológico e eleitoral na Venezuela nosso aporte da análise.
Os chamados chavistas defendem a idéia de uma igualdade social, um Estado mais interventor que, em teoria contribua para a inclusão social do povo mais pobre, camponeses ou proletários das grandes cidades, através de políticas públicas afirmativas e em meio à participação popular constante para a consecução do que chamam de revolução bolivariana. Já os partidários de Capriles esperam que o regime democrático seja caracterizado pela liberdade e autonomia de suas instituições, com pouca intervenção estatal e menor aparelhamento do Estado por parte daqueles que estão no poder, defendendo igualmente uma visão mais técnica da economia local e uma maior abertura econômica do país ao mercado exterior como forma de ampliar o desenvolvimento e integrar os venezuelanos no capitalismo global.
Assim, os dois modelos servem de base para os dois lados da contenda, cada um deles defendendo uma idéia distinta de democracia, os chavistas, mais preocupados com as questões de ordem social e seus opositores, mais preocupados com as liberdades individuais dos cidadãos venezuelanos.
Como não poderia deixar de ser diferente, ambos os lados afirmam que o outro é eminentemente golpista e antidemocrático, tal como da mesma forma no Brasil, durante o chamado período democrático (1945 – 1964), liberais e nacionalistas provocavam uns aos outros a todo o momento, os primeiros acusando os segundos de populistas (demagogos que queriam manipular o povo pobre por meio de políticas assistencialistas) e esses últimos acusando os primeiros de entreguistas (aliados do imperialismo dos EUA que queriam vender/entregar as riquezas nacionais para o capital estrangeiro).
Nesse sentido, a segunda ponderação diz respeito à idéia bastante fluída que temos de democracia em meio aos embates políticos cotidianos, já que mesmo o mais fanático socialista, fascista, autoritário, totalitário ou ditador se vê como um genuíno democrata, acusando seus inimigos e adversários de golpistas e utilizando-se dessa fluidez teórica para legitimar seu respectivo regime político autocrático.
Se o critério para demarcarmos de fato uma democracia fosse somente o voto na urna, não poderíamos jamais acusar o chavismo de ditatorial, pois na Venezuela, ao longo de 14 anos de governo Chávez, ocorreram 18 eleições, seja para a escolha do presidente ou mesmo em mudanças na constituição. Assim sendo, os modelos de democracia são diferentes e seja por interesses pessoais dos detentores do poder ou daqueles que também anseiam o poder, a idéia de democracia tem servido a diferentes lados de uma contenda ideológica e política. Quanto ao adversário-inimigo, bom, ele será sempre o golpista antidemocrático na visão do outro.
Marco Collares